03/12/2018

Don Melchor e a metáfora na lenda do Casillero del Diablo

Uma das melhores visitas que um apreciador de bons vinhos pode fazer, ao viajar ao Chile, é conhecer a vinícola Concha y Toro, a maior do Chile e fundada em 1883, por Don Melchor de Concha y Toro. A vinícola situa-se na localidade de Pirque, Região Metropolitana da Capital, num parque belíssimo e aprazível, com árvores centenárias e guardada pela mansão da família fundadora, construída em 1875. Qualquer viajante pode optar por um serviço de turismo ao custo de cerca de trinta dólares, ser conduzido por uma van e contar com a tranquilidade de degustar bons rótulos sem o perigo de dirigir de volta até Santiago, conhecendo a vinícola, o parque onde está instalada e a famosa adega, alvo da lenda. Sempre que vou ao Chile, trago na mala alguma rara garrafa do maravilhoso vinho chileno.

Segundo a lenda, Don Melchor observou que eram frequentes os roubos de garrafas dos seus melhores vinhos, guardados na adega original da propriedade. De nada adiantavam as providências para a segurança e proteção dos preciosos vinhos, e cada vez mais desapareciam garrafas, o que levou o fundador a crer que seus próprios empregados estariam envolvidos na pilhagem constante.

Don Melchor teve a ideia de espalhar boatos de que, numa macabra parceria com o Diabo, este teria sido convidado a morar da adega, passando a guardar os vinhos ali depositados. Rapidamente o boato se espalhou e os trabalhadores, camponeses e habitantes da região, muito supersticiosos, passaram a crer que o Diabo, realmente, vivia ali. Por esta razão ou não, o fato é que os roubos reduziram a, praticamente, zero. Com o tempo, o boato virou lenda, e a lenda, atualmente, virou excelente estratégia de propaganda e marketing do maravilhoso vinho chileno.

Bem, Don Melchor era um grande proprietário de terras num Chile, quase feudal, no século XIX. Desde este tempo, a população branca de imigrantes e seus descendentes, somados à aristocracia colonial local, explora as riquezas daquelas terras à exaustão, tanto da natureza quanto das populações originais locais, compostas basicamente de índios e mestiços, somando à eles, parcelas de imigrantes pobres, na maioria degredados da Europa, assim como aconteceu com a maioria dos colonos que ajudou a construir a histórica massa populacional pobre das Américas.

Pois o boato-lenda do latifundiário e senhor de terras e pessoas, branco-europeu, rico e explorador, cujo poder é capaz de dar emprego ao Diabo, para proteger suas riquezas e não dividi-las, sob nenhuma hipótese com aqueles pobres e mal sucedidos, nos remete aos tempos atuais e notamos que, ao longo da história, a elite branca e poderosa usa meios e artifícios diversos, manipula, inventa histórias escabrosas, faz qualquer negócio para não repartir um só centímetro do que tem, mesmo sendo fruto da usurpação, da ocupação indevida de terras e exploração desta terra e dos meios de produção.

O Diabo, aliado de hoje, é a lenda da invasão comunista. Curiosamente também sob o estigma da cor vermelha, comunistas, socialistas, petralhas, sindicatos e tudo aquilo que “não presta”, aos olhos dos donos do novo mundo e seus feitores, numa roupagem moderna, recebem a pecha de Diabo para que se construa uma lenda abençoada por Deus, e passam a constituir uma ameaça. A lenda macabra, agora, é um espectro criado em defesa do patrimônio da elite e seus sagrados direitos sobre a terra e tudo o que nela contem, e surge para assombrar trabalhadores, camponeses e gente ingênua, desprovida e pobre.

Interpretando a metáfora, na América moderna, Deus e o Diabo são usados sem escrúpulos para atuar como feitores e guardas do patrimônio da elite e pela manutenção do status quo, através de lendas e assombrações.

Vídeo da Lenda, em Espanhol: 


Vídeo da Lenda,  em Português:  


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