12/09/2016

Reflexões sobre imagem dos serviços públicos

      No início dos anos 90 comprei um apartamento de um casal de amigos que estava mudando para outra cidade. Transferir o financiamento para meu nome significava, praticamente, dobrar o valor de avaliação para financiamento. Coisas da estranha economia brasileira da época. Como faltavam poucos anos para a quitação e, sendo um negócio entre amigos, fizemos um contrato de gaveta registrado no cartório de títulos e documentos especiais, bem como providenciei uma procuração por instrumento público para poder tratar dos assuntos referentes ao imóvel. O agente financeiro era a Caixa Econômica Estadual.
      Com estes documentos, coloquei as contas referentes ao imóvel no meu nome na imobiliária administradora do prédio, no cadastro dos impostos e taxas da prefeitura, cheguei a ser conselheiro de administração e síndico do prédio. Porém, não conseguia transferir o imóvel para meu nome sem multiplicar o débito, inexplicavelmente, por dois, nem pagar as prestações com cheque ou colocar no débito em conta na minha conta bancária no Banrisul, instituição financeira pública, do estado do Rio Grande do Sul, assim como a Caixa Econômica Estadual - que não aceitava e não respeitava esta recontratação.
      Assim, durante anos, mensalmente, eu ia até a agência da Caixa Estadual ali na Rua Duque de Caxias. Entrava numa fila para pegar o boleto, noutra fila para pegar uma autorização para pagá-lo e, depois, numa outra fila do caixa, para efetuar o pagamento em dinheiro vivo. Algumas vezes o funcionário não aceitava minha procuração por instrumento público e fornecia um formulário de procuração da Caixa Econômica Estadual para colher a assinatura dos meus amigos, que deveria ser reconhecida por autenticidade no cartório. Outro transtorno, pois eu tinha que enviar para eles pelo correio e receber da mesma forma. Esta procuração, de uma hora pra outra já não valia mais, dependendo do humor do funcionário da Caixa, e eu tinha que fazer tudo de novo. Era um grande tormento pagar minha prestação e, ao menos, um turno do dia seria perdido, quando não um dia inteiro dentro da agência da Caixa até conseguir pagar a conta. Um inferno terrível. Parecia um castigo padecer daquele jeito nos labirintos do descaso e da falta de bom senso dos funcionários da Caixa Econômica Estadual.
      Esta humilhação seguiu durante alguns anos, até que num dia eu cheguei na agência para cumprir minha via sacra e notei que não haviam filas. Ao perguntar como fazer para pagar fui orientado a dirigir-me direto ao caixa, que me atendeu com presteza e simpatia, e bastante solicitude em perguntar se eu queria pagar com cheque ou dinheiro, alertando – ainda, para a possibilidade de colocar no débito em conta a fim da facilitar minha vida. Primeiramente eu imaginei tratar-se de uma pegadinha, mas - antes de acordar-me do sonho, o gentil servidor sugeriu-me tomar café com uma colega dele numa mesinha na entrada da agência: “assunto muito importante e do seu interesse”, afirmou.
      Na tal mesinha, diante da funcionária prestativa e saboreando o delicioso café com biscoitos descobri as razões de tanta deferência. Estavam organizando uma lista de assinaturas num documento de apoio à Caixa Econômica Estadual, naquele momento em vias de ser extinta pelo Governo do Estado. A mocinha até me comoveu com o discurso pronto: “Cidadão! Este governador, um neoliberal sacana, quer acabar com a SUA Caixa Econômica Estadual e o senhor não pode deixar que isto aconteça, blá, blá, blá...” Olhei bem nossos olhos dela e refleti: “Esta merda aqui nunca foi minha. Só o que tenho aqui nestes anos é humilhação e desserviço..” Bem, resumindo, a Caixa Econômica Estadual foi extinta e seus ativos privatizados, pois o governo neoliberal atacou com grande fúria privatista. A carteira imobiliária foi absorvida pelo Banrisul, por coincidência onde recebia meu salário, e passei a pagar as prestações no débito direto na minha conta corrente. Alguns anos depois quitei o imóvel.
      Hoje, observo como grandes corporações públicas como a CEEE, a Corsan e até a Segurança Pública, prestando péssimo serviço ao contribuinte, tratado com distância e atendimento absolutamente desqualificado, e noto como vão se tornando organizações vulneráveis quando atacadas por neoliberais. Aí ocorre o momento em que lembro o poema No caminho com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa:
"[...]
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor do nosso jardim. 
E não dizemos nada. 
Na segunda noite, já não se escondem; 
pisam as flores, matam nosso cão, 
e não dizemos nada. 
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, 
rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”