No início dos anos
90 comprei um apartamento de um casal de amigos que estava mudando para outra
cidade. Transferir o financiamento para meu nome significava, praticamente,
dobrar o valor de avaliação para financiamento. Coisas da estranha economia
brasileira da época. Como faltavam poucos anos para a quitação e, sendo um
negócio entre amigos, fizemos um contrato de gaveta registrado no cartório de
títulos e documentos especiais, bem como providenciei uma procuração por
instrumento público para poder tratar dos assuntos referentes ao imóvel. O
agente financeiro era a Caixa Econômica Estadual.
Com estes
documentos, coloquei as contas referentes ao imóvel no meu nome na imobiliária
administradora do prédio, no cadastro dos impostos e taxas da prefeitura,
cheguei a ser conselheiro de administração e síndico do prédio. Porém, não
conseguia transferir o imóvel para meu nome sem multiplicar o débito, inexplicavelmente,
por dois, nem pagar as prestações com cheque ou colocar no débito em conta na
minha conta bancária no Banrisul, instituição financeira pública, do estado do
Rio Grande do Sul, assim como a Caixa Econômica Estadual - que não aceitava e
não respeitava esta recontratação.
Assim, durante anos,
mensalmente, eu ia até a agência da Caixa Estadual ali na Rua Duque de Caxias.
Entrava numa fila para pegar o boleto, noutra fila para pegar uma autorização
para pagá-lo e, depois, numa outra fila do caixa, para efetuar o pagamento em
dinheiro vivo. Algumas vezes o funcionário não aceitava minha procuração por
instrumento público e fornecia um formulário de procuração da Caixa Econômica
Estadual para colher a assinatura dos meus amigos, que deveria ser reconhecida
por autenticidade no cartório. Outro transtorno, pois eu tinha que enviar para
eles pelo correio e receber da mesma forma. Esta procuração, de uma hora pra
outra já não valia mais, dependendo do humor do funcionário da Caixa, e eu
tinha que fazer tudo de novo. Era um grande tormento pagar minha prestação e,
ao menos, um turno do dia seria perdido, quando não um dia inteiro dentro da
agência da Caixa até conseguir pagar a conta. Um inferno terrível. Parecia um
castigo padecer daquele jeito nos labirintos do descaso e da falta de bom senso
dos funcionários da Caixa Econômica Estadual.
Esta humilhação
seguiu durante alguns anos, até que num dia eu cheguei na agência para cumprir
minha via sacra e notei que não haviam filas. Ao perguntar como fazer para pagar
fui orientado a dirigir-me direto ao caixa, que me atendeu com presteza e
simpatia, e bastante solicitude em perguntar se eu queria pagar com cheque ou
dinheiro, alertando – ainda, para a possibilidade de colocar no débito em conta
a fim da facilitar minha vida. Primeiramente eu imaginei tratar-se de uma
pegadinha, mas - antes de acordar-me do sonho, o gentil servidor sugeriu-me
tomar café com uma colega dele numa mesinha na entrada da agência: “assunto
muito importante e do seu interesse”, afirmou.
Na tal mesinha,
diante da funcionária prestativa e saboreando o delicioso café com biscoitos
descobri as razões de tanta deferência. Estavam organizando uma lista de
assinaturas num documento de apoio à Caixa Econômica Estadual, naquele momento
em vias de ser extinta pelo Governo do Estado. A mocinha até me comoveu com o discurso
pronto: “Cidadão! Este governador, um neoliberal sacana, quer acabar com a SUA Caixa
Econômica Estadual e o senhor não pode deixar que isto aconteça, blá, blá, blá...”
Olhei bem nossos olhos dela e refleti: “Esta merda aqui nunca foi minha. Só o que
tenho aqui nestes anos é humilhação e desserviço..” Bem, resumindo, a Caixa
Econômica Estadual foi extinta e seus ativos privatizados, pois o governo
neoliberal atacou com grande fúria privatista. A carteira imobiliária foi
absorvida pelo Banrisul, por coincidência onde recebia meu salário, e passei a
pagar as prestações no débito direto na minha conta corrente. Alguns anos
depois quitei o imóvel.
Hoje, observo como grandes
corporações públicas como a CEEE, a Corsan e até a Segurança Pública, prestando
péssimo serviço ao contribuinte, tratado com distância e atendimento absolutamente
desqualificado, e noto como vão se tornando organizações vulneráveis quando
atacadas por neoliberais. Aí ocorre o momento em que lembro o poema No caminho com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa:
"[...]
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim. E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores, matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
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