Nos
meus verões da infância e da adolescência era corrente a temporada no litoral
sul de Santa Catarina. Meu avô materno, advogado e empresário do ramo
imobiliário, construiu uma vida naquela região espremida entre os contrafortes
da Serra do Mar e o oceano, de Torres à Araranguá. O escritório e a residência do
“gordo”, como carinhosamente o chamávamos, ficava em Sombrio, curiosa cidade
emancipada de Araranguá no início do anos 50 e que, até os anos 90 formava a
fronteira com o Rio Grande do Sul, de onde recebeu forte influência. Tanto que
a bandeira oficial do município é a tradicional bandeira gaúcha com o brasão
sombriense aplicado no centro.
Naquele tempo, a base econômica era agrícola,
concentrada no fumo e no arroz, mas já despontava sua vocação industrial calçadista
e moveleira. À cidade localizada ao longo da BR-101, bem no meio do caminho
entre Porto Alegre e Florianópolis, chegávamos em três horas de viagem em
confortáveis ônibus da Santo Anjo ou da São Cristóvão. Não tinha mais do que
cinco mil habitantes e duas avenidas calçadas – a principal, do trevo na BR-101,
terminava na igreja, sentido oeste leste, e outra que cruzava no sentido norte
sul. Tínhamos casa no Balneário Gaivotas, então um distrito da cidade. Mar aberto
de águas tão limpas e transparentes quanto geladas, muito bom para o surfe que chegaria
por lá em meados dos anos 70, trazido pelos filhos da jovem burguesia que se
formava.
Bem, eu e meu irmão frequentávamos a high society
local, com a mesma desenvoltura que transitávamos no povão. Todavia, nossos melhores
amigos estavam, mesmo, misturados neste povão onde nos sentíamos mais à
vontade. Minha adolescência cruzou os anos 70 como um bólido veloz e instável,
próprio da idade e também esteve por ali, em loucos verões com muito mar, muito
sol, muito rock’n’roll e blues, muita bebida e maconha. Nossa juventude
resistia como podia, contra tudo e contra todos. Nossas vidas eram bastiões
ante o avanço do conservadorismo, mais arcaico, e o liberalismo, mais destruidor.
As famílias rodrigueanas e o estado repressor, representavam tudo o que não
queríamos reproduzir. Eu e meu irmão travávamos nossas próprias batalhas para
sobreviver e construir nossos espaços. Aquela década foi muito intensa. Viver
em Porto Alegre estava ficando muito perigoso e nossa chance de experimentar a
liberdade eram as escapadas para Sombrio e suas praias, verão e inverno,
incluindo alguns feriados ao longo do ano.
Minha memória está povoada de
boas lembranças de Sombrio e os grandes amigos que fiz: Guda, Jair, Zé Jacques,
Marcinha, Eládio, Sólon do Canto, Paulinho Vignali, Pasteur, Bani, Moacir, Ângela. Enfim, notáveis seres
humanos que viverão para sempre no melhor lugar do meu coração.
Ontem foi aniversário de 75
anos do Bob Dylan, lembrei da magia dos anos 70 e seus extremos, e minha
memória resgatou a imagem de uma figura emblemática da cidade naquela época. O
Salvão, batizado Sálvio Collares, sujeito folclórico e interessante, magrão alto,
cabeludo, barbicha de rock star, um
protótipo do Raul Seixas, educado e incapaz de fazer mal a alguém, um hippie
maluco e ingênuo, que imaginava um mundo sem guerras, com muita música e pouca
roupa, costumava circular pelas ruas tocando violão e cantando. Eu gostava muito
de ver a simplicidade daquela criatura que tinha, na música, sua forma de
interpretar o mundo e, ao mesmo tempo, aquietar sua alma.
Um dia o Salvão estava no
maior astral e cantava sua singular versão do clássico Mr. Tamborine Man, do mestre dos mestres, Bob Dylan. Num inglês absolutamente intraduzível, o intérprete
cantava, acompanhado das impecáveis cifras do violão, e – a plenos pulmões,
fazia chegar a mensagem ao seu público que o acompanhava num cortejo lisérgico-pacifista
rua à fora: Hey! Mr. Tangerine Man, plant’a
som for me... Lembrei disto e sorri para mim mesmo, pensando que o Bob
Dylan precisaria saber como sua música toca a alma das pessoas, mesmo a quem
não a entenda em uma só palavra.
Se a vida é complexa, o ser
humano - na sua pureza, é capaz de reduzi-la a algo mais entendível. Sem
dúvida. E o importante mesmo, como naquela música da banda O Terço, é a vida.
Que corre em nossas veias, a pulsar.
Um comentário:
KKK, era mesmo muito engraçado....e as versões do Salvão pras músicas dos Beatles então??? "Gudbai tchu tchei"...pobre Jane...KKKK.
vlw mano véio,
muito bom lembrar disso tudo...
abraço
Henrique
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