02/11/2014

O Menino da Marcílio Dias

      Não lembro exatamente o dia, mas foi em 1985 e eu estava esperando a Rosane em frente ao prédio do CPD da Caixa Federal, na Marcílio Dias. Ela trabalhava até a noite e íamos viajar, era sexta-feira - véspera de um grande feriadão, e estava chovendo.
      De repente um homem bateu levemente no vidro do meu carro para chamar minha atenção. Sentando ao volante, observei um menino na altura do meu rosto me observando com seus olhos tristes e a carinha manchada de pingos de tinta branca e um pouco de sujeira escorrendo nas bochechinhas com a água da chuva que, tocada pelo vento, teimava em enganar o surrado guarda-chuva que mal abrigava o homem e a criança.
      Abri o vidro e o homem pediu algo como os cinco reais de hoje, porque precisava ir até o bairro Restinga, onde morava, e não tinha grana suficiente para o ônibus dele e do menino. Por ele iria a pé, mas não queira cansar o garoto, seu filho, que tinha vindo com ele durante a semana para aprender o oficio de pintor, trabalho com que o homem sustentava sua numerosa família.
      Estava sem grana porque ficara pintando um grande apartamento no final da Getúlio Vargas e o patrão, dono da imobiliária ali da esquina da Getúlio com a Marcílio, não o tinha podido esperar para pagar a semana de trabalho. O patrão era um homem bom, trabalhava para ele por anos e lhe avisara que não chegasse tarde porque tinha pressa em viajar no feriadão com a família. Por certo demorou muito e o patrão viajou. Agora estava sem o dinheiro suficiente para ir para casa e não queria sacrificar o garoto indo a pé até o bairro Restinga com aquela chuva toda.
     Ao ouvir aquela história e observando os olhos famintos do menino, abri a carteira, também saindo para viajar e aproveitar o feriadão, estava com muitas notas dentro, mas nenhuma nos cinco reais que o homem precisava. Revirei os bolsos e o porta-luvas, mas apenas notas de cinquenta e de cem eu encontrei. Tomado por um sentimento estranho e, sem desviar meus olhos dos olhos do menino, ofereci uma nota de cinquenta, que o homem prontamente recusou, desculpando-se, porque necessitava apenas completar a passagem do ônibus no valor de cinco reais. Eu retruquei dizendo que ele poderia fazer umas compras e levar para casa, para preparar um jantar em família. A chuva ficou mais forte, e o homem recusou novamente, agradecendo e desculpando-se pelo incomodo que estaria a me causar. Ele somente precisava completar o dinheiro da passagem e depois, não queria que o filho aprendesse a pedir, mas sim a receber pelo trabalho honesto.
       Eu sai do carro e insisti, agora argumentando que seria ruim para o menino aquela hora da noite e com chuva, estar ao desabrigo. O menino abraçou a cintura do pai, assustado, e o homem, já irritado comigo, perguntou porque eu estava querendo humilhá-lo na frente do filho. Ele só tinha me pedido algum recurso solidário para completar a passagem, não precisava do meu dinheiro para dar comida à sua família, porque trabalhava e recebia para tanto, e o menino estava aprendendo isto.
      Argumentei que seu patrão não o tinha esperado e pagá-lo pelo seu trabalho e que este dinheiro que oferecia seria, então, um empréstimo. Na outra semana eu viria receber. O homem recusou novamente o dinheiro, pois o patrão era um bom homem, só o tinha esquecido naquele dia porque era um homem muito ocupado e, como eu estava fora do carro e era mais alto que ele, num gesto brusco protegeu seu filho atrás do seu corpo, fechou o guarda-chuva, e adotou posição de defesa, como se eu fosse atacá-lo. O menino continuava a me olhar fixo, com seus olhos tristes e agora com medo. Acometido por uma emoção que nunca havia experimentado, me vi na chuva, molhado e oferecendo meu dinheiro ao homem.
      Peguei toda a grana que tinha carteira e lhe ofereci, já xingando - aos berros, o homem que, ao meu ver, não estava cuidando bem do seu filho. Pois o sujeito bateu na minha mão jogando meu dinheiro no chão encharcado, virou as costas e afastou-se já me criticando, ameaçadoramente, recusando meu dinheiro e me chamando de maluco.
      A Rosane vinha saindo com seus colegas e vendo a cena, inicialmente pensaram tratar-se de um assalto. Vieram socorrer. Eu estava chorando e não conseguia explicar o que tinha acontecido. Não viajei mais no feriadão e passei aqueles dias calado, sem conseguir entender o que tinha acontecido. Mas, passados trinta anos eu não consegui, por um momento que seja, esquecer o olhar triste daquele menino.