29/04/2014

A metáfora do Granma e o dilema da esquerda


o iate Granma - foto de Pettersen Filho, 1956
Reza a lenda que durante a travessia do Granma, barco que, em 1956, conduziu, do México ao litoral de Cuba, 82 guerrilheiros que iniciariam a grande jornada até a vitória da Revolução em 1959, um deles, à noite, caiu no mar. Grande discussão se fez a bordo. Alguns opinavam que o desembarque não poderia sofrer atraso, sob pena de serem apanhados pela repressão. Em nome da causa se impunha o sacrifício do companheiro e coisa e tal. Fidel se opôs argumentando que a Revolução se faria para salvar vidas e seria um contrassenso e grave erro ético, abandonar o náufrago ao infortúnio. A final do processo de discussão o companheiro foi resgatado. Não se tem provas de que a Revolução tenha atrasado seu curso ou que a chuva de balas e o bombardeio que esperaria aquele grupo no desembarque na praia tenha sido causada pelo atraso na busca do companheiro naufragado, mas o gesto em si impõe, historicamente, a máxima do processo revolucionário socialista a que Cuba ainda é o principal estandarte: a solidariedade. 

coluna guerrilheira avança sobre Havana, dezembro'1958
Aqueles vinte e poucos revolucionários que sobreviveram ao ataque no desembarque conseguiu resistir e sobreviver solidariamente e, vinte e cinco meses depois iniciaria o mais duradouro movimento ideológico-revolucionário da história da humanidade, solidificando a solidariedade como seu principal centro motriz. Os cubanos, neste meio século, exportam a si mesmos e seus ideais de solidariedade pelo mundo, através dos seus médicos e médicas, educadores e educadoras. Cuba mantém o mito da revolução através da solidariedade e da generosidade. Cruzaram o Oceano Atlântico em aviões quadrimotores com 50 anos de uso, sem bancos, às escuras com alimentos, munição e soldados, para ajudar a libertação de países na África como a Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Enviaram ajuda humanitária pelo mundo e até açúcar e remédios para tentar salvar o governo de Allende, no Chile, cercado pela CIA e seus aliados em 1973.

posse do Presidente Lula, em 2003
A Revolução Cubana, após meio século ainda é o grande mito das esquerdas no mundo. Depois da autodestruição do império da União Soviética, do desaparecimento de caricatos regimes na Romênia de Ceaussescu e de Ever Roxha na Albânia, bem como do surgimento da salada ideológica chinesa, Cuba mantém-se firme como único exemplar legitimo da Revolução Socialista, tendo como princípio, meio e fim a Solidariedade. 

No Brasil, foram desembarcados milhares de médicos cubanos nos últimos ano,s solidários com nossas necessidades de profissionais de ponta na saúde. Um gesto generoso, solidário e sobretudo emblemático, uma vez que aqui a esquerda inicia uma tomada do poder através do voto, repetindo Allende, 40 anos atrás, e consolida-se sob a égide sagrada da... solidariedade. Nunca os brasileiros foram tão felizes. Nunca amaram tanto. O Brasil também passou a exportar a solidariedade como herança mágica do DNA da felicidade, levando recursos - dinheiro, estradas, remédios, futebol - para o Haiti, para os pobres da África e da Ásia. Protegeu jovens governos populares na América do Sul e Central, consolidando a solidariedade como símbolo, mas também construindo-a como a grande metáfora da esquerda brasileira.

Desde os anos 80, quando o Brasil retomou seu caminho democrático, a esquerda - de forma competente, sustenta seu crescimento sob o manto sagrado da solidariedade como principal fundamento ideológico. Não tratar as diferenças conforme suas particularidades é algo tão exótico quanto ser contra o sistema de cotas. Ser contra a reforma agrária é algo tão abominável quanto ser contra a copa do mundo. Solidariedade não é óbulo, caridade, mas sim um direito e representa o equilíbrio. A receita foi adequada e encaixou-se como uma luva pois, enquanto a esquerda no mundo estava na encruzilhada entre a  decadência e a reconstrução, desabando com o muro de Berlim, aqui foi possível recriar o socialismo tropical, fundindo-o com o DNA da solidariedade, excelente modelo de exportação cubano - o contraponto ao individualismo, à ganância e à competição, propostas pela direita como solução para os males do mundo, agora numa roupagem exclusiva, grife modelo século XXI - o neoliberalismo,

Karl Marx
No entanto, os ciclos da história não se esgotam por acaso, mas pela ação humana, algo confirmado por Marx. Enquanto a nova tese e sua antítese não dão lugar a uma nova síntese, nos cabe entender os processos e seus escaninhos. Eu prefiro analisar as pontas soltas. Uma ponta solta nos cadarços do sapato podem derrubar o caminhante. E uma bela ponta solta é esta Grande Metáfora que desafia a gênese da esquerda socialista. Tenho observado como cresceram os partidos de esquerda quando no poder e analiso para onde vão e o que acontece com os antigos militantes que carregavam bandeiras nos anos 70 e 80, com seus olhares sempre direcionados ao horizonte, como que enxergando o futuro, e que pregavam a solidariedade como passaporte da felicidade. 

Fico triste em notar um homem do porte do José Genuíno iniciar um processo de desaparecimento. Começo a notar que ninguém mais fala do Celso Daniel, do Betinho, do Henfil, que doou aquela simpática avezinha negra - a Graúna, para o Partido dos Trabalhadores utilizar como símbolo. Ora, a Graúna é um dos símbolos da solidariedade do nordestino. Comecei a observar que os seres humanos vão sumindo substituídos por outros mais jovens munidos de IPAD, IPHONE, GPS, multilíngues em ternos bem cortados, numa receita parecida com a de seus adversários neoliberais onde o velho, o antigo, não tem valor de mercado. Só que indo ao fundo, notei que estes esquecidos também esqueceram de alguém pelo caminho. Enormes grupos de militantes que correram riscos e conseguiram escapar dos tanques verde-oliva agora são patrolados por modernos rolos-compressores que esmagam e trituram gente e ideias. Alguns caras são simplesmente abandonados, largados no caminho para morrer. Na verdade a nomenklatura sempre gerenciou os processos - sejam eles planos de desenvolvimento, de ataque armado a um objetivo militar ou de aproveitamento de seres humanos. Como soldados da infantaria, descartáveis pelos comandantes, hordas de militantes se lançam em ruas, vilas ou no campo. Correm riscos, lutam, brigam e até roubam... buscam soluções possíveis e impossíveis para traduzir ideias, para materializar sonhos e - um dia, na conquista do poder, simplesmente são esquecidos, abandonados.

Será que alguém lembra dos nomes dos guerrilheiros que expropriaram o cofre do Ademar de Barros? Dos que foram torturados e assassinados por conta daquela ação armada? Alguém lembra dos doadores de campanha, ao menos desde 1989? Dos militantes que venderam carros e imóveis da família para ajudar a pagar campanhas? Por outro lado tem alguns vetustos cidadãos circulando por aí com significativas aposentadorias de deputado ou governador após trabalhar (?) quatro anos... Como o viajante diante da esfinge, ao ingressar no mundo da política tradicional o militante se depara com a pergunta: - Tu me decifra ou eu te devoro! Não tem terceira opção. Ou ele se adapta como a água no vaso, ou ele será esquecido depois que não der mais caldo o suficiente.

Soube de velhos e doentes militantes quebrados depois de tanto ajudar a pagar campanhas e vi governador passar por um deles fingindo que não o conhece, sem coragem de fitar seus olhos. Sei de deputados que nunca tem tempo para atender cabos eleitorais, e de vereadores que até mudam o número do celular. E vi gabinetes e repartições abarrotados de cc's, puxa-sacos e amantes de aluguel, que nunca conseguiram passar do primeiro parágrafo do programa do partido. Dirigentes de estatais nomeados "por curriculum" que na realidade são ladrões e vigaristas, mestres em repartir o butim com seus amos, outros tipos de pilantras que não conseguem manter seus pintos dentro das calças.

Gulags: campos de reeducação na antiga URSS
Conheci gente que tem gavetas cheias de cheques sem fundo de uns políticos importantes que cagam regras de bom comportamento por aí. Gostaria de ver estes cheques saírem das gavetas e irem parar nos cartórios de protesto e nos jornais. Stalin, durante os anos de seu reinado autoritário resolveu o seu problema com os companheiros e colaboradores enviando-os para os Gulags e tirando-os até dos retratos e dos livros de história. No neosocialismo pregado pela nova esquerda, não há lugar para a solidariedade. Este pessoal sem alma, simplesmente deixa seus antigos companheiros pelo caminho, para morrerem de fome e  doentes. E esta gente perversa tem tanta presunção, que não consegue lembrar que uma ponta solta nos cadarços do sapato podem derrubar o caminhante.

Diante da Grande Metáfora proporcionada pela busca do náufrago do Granma, o dilema das esquerdas está em descobrir se a solidariedade pregada é a mesma aplicada. Ou seja, qual a síntese entre esta tese e sua antítese, dentro da mesma gênese. O pensador poderá até descobrir, na pesquisa, se a sua alma não foi abandonada ou negociada com alguém.